Luiz Preza

Autorreferência - Capítulo 1

Luiz dos Santos Preza


Manhãs de domingo, era hábito meu pai pedir que eu fosse ao jornaleiro comprar jornal e pacotes de figurinhas do álbum História Natural. Durante a semana, em dias aleatórios, podia ser que ele chegasse à noite com alguns pacotinhos, mas era aos domingos, logo pela manhãzinha, que ele dizia: - Vai comprar o jornal e vinte pacotes de figurinhas. Na época a procura pelas figurinhas daquele álbum era grande. Uma vez, ao chegar à banca de jornal, ouvi do senhor Jorge, jornaleiro, que infelizmente tinha acabado de vender os últimos pacotinhos de figurinhas. Ele pôde, então, constatar a decepção expressa pelo meu corpo todo, cuja boca, sem saber o que dizer, deixou passar as seguintes palavras: - Que horas que vai chegar mais? Depois daquele dia, seu Jorge, comovido pela cena do menino decepcionado, criou o hábito de deixar, aos domingos, reservados para mim vinte pacotinhos de figurinhas. Meu pai me aguardava enquanto eu corria pelas ruas do subúrbio trazendo a felicidade dominical bem guardada no bolso e as notícias amassadas nas mãos. No fundo, hoje percebo que a ansiedade era comum em ambos. Prova disso era o atropelamento da leitura das notícias pelo ritual de abertura dos pacotinhos, sempre cercado de expectativa e emoção, compartilhado pelo objetivo prazeroso de encontrar a figurinha que completaria uma página do álbum.
- Poxa, veio repetida!
Hoje percebo que abrir um pacote de figurinhas é um ato poético, pois libera uma potência de vida que estava aprisionada. Então, podemos compreender como pode ser maravilhoso estar sentado no sofá ao lado do pai, rasgando a fina tira de papel da parte superior de cada pacotinho com a lentidão que o ritual impõe, sempre com o cuidado para, eventualmente, não atingir nenhuma das figurinhas; sempre esperando daquele ato uma revelação semelhante à do mistério que nos trouxe a esse mundo. Ah, e aquele aroma específico exalado das figurinhas que parecem terem sido impressas naquele instante mesmo! Cada pacotinho rasgado é, então, uma descoberta precedida da crepitação dos nervos e das carnes. E quando a expectativa é correspondida, cada figurinha colada nos vazios reservados das páginas do álbum é motivo de deslumbramento. Contudo, a decepção também faz parte do caráter lúdico da vida e do colecionismo. As figurinhas repetidas, o surgimento do mesmo quando se espera o novo, faz ascender uma ambiguidade inerente tanto ao ato de colecionar quanto à experiência de viver - qualidade expressa pela frustração da repetição.
Em seu suposto último conto, Jorge Luís Borges escrevera que à medida que transcorrem os anos, todo homem tem a obrigação de carregar uma bagagem de experiências - o crescente fardo de sua memória. A identidade do homem assume forma com o tempo em função de suas lembranças pessoais. Nesse sentido, um álbum poderia, então, ser tomado como uma metáfora para a memória, assim correspondendo seus cheios e lacunas a alegrias e decepções vividas. O álbum aos poucos, também, vai sendo preenchido diante da realização das expectativas do colecionador. Contudo, sua graça também está em permanecer incompleto, inacabado, como uma potência que arde sem, contudo, se exaurir. O ato de colecionar, em certa medida, se confunde com a dinâmica dos movimentos da vida. Acumulação, experiência, colecionismo e memória parecem termos intrinsecamente relacionados à humanidade. O homem quando nasce é como se fosse um álbum vazio. Cada experiência humana equivale a uma figurinha colada no álbum, e é assim que pari passu homem e álbum constroem sua identidade.
É própria do colecionismo uma espécie de encantamento que transforma a frustração da figurinha repetida numa positiva replicação de expectativas. A positividade da repetição nasce da possibilidade da troca entre os diferentes. Quem domina a arte ou o saber do colecionador conhece o valor da troca como os viajantes reconhecem a importância das relações de alteridade. A troca é um ato de resistência do colecionador que subsume uma falta. A falta perde negatividade, superada pela busca do outro e pela simplicidade de um interesse comum. Quando Borges escreveu sobre o “fardo da memória” e o valor das “lembranças pessoais”, ele aludia a um sonho no qual sua memória fora eventualmente substituída por uma cadeia de sequências e lembranças alheias. O álbum, como metáfora da vida, representa para mim um correspondente de identidade porque significa uma forma de preservação e afirmação da memória pessoal.
O mundo é construído sob uma trama de representações sociais que mascaram a realidade. Segundo Serge Moscovici, “essas representações são tudo o que nós temos, ou seja, aquilo a que nossos sistemas perceptivos, como cognitivos, estão ajustados.” A intervenção dessas representações tanto nos orienta em direção ao que é visível como àquilo a que nós temos de responder. Como consequência somos aprisionados no que Kafka chamou de “cadeias da vida cotidiana”. Colecionar um álbum de figurinhas é um ato mágico e misterioso porque pode ser entendido como uma forma de libertação que pode transformar a vida como ela é - uma marcha rumo a esse cárcere da perda da identidade - em como deveria ser, ensinando como escapar dessa prisão cotidiana, e isso já é fascinante. Colecionar é pois uma arte, e se a arte tem uma função é a de libertar o homem tanto quanto a verdadeira literatura pode ensinar.
No próximo capítulo, vou falar sobre o outro objetivo de meu pai como colecionador de figurinhas.

 

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